• Nó Górdio 2
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  • domingo, 10 de março de 2019

    ASPECTOS CULTURAIS OCIDENTAIS ACERCA DA MORTE VOLUNTÁRIA


    Introdução




    “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a perna ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia” (CAMUS, 2016, p.19). Assim se inicia o livro “O mito de Sísifo” do filósofo e escritor franco-argelino, Albert Camus. Durante o presente trabalho, tal celeuma apresentada será norteadora do estudo das principais teorias que influenciaram o pensamento cultural contemporâneo a respeito da morte voluntária.


    A mudança de visão sobre o fenômeno do suicídio ao longo do tempo




    Albert Camus já apresentava que todo o pensamento filosófico só seria de real importância após ser encontrada a resposta se a vida valeria a pena ser vivida ou não. Tal resolução foi motivo de grandes divergências por vários séculos e continua suscitando debates e influenciando comportamentos religiosos.

    O fenômeno da automorte nunca teve um significado tão carregado de condenações morais e religiosas como desde a Idade Média até a Idade Contemporânea. Começando pelo próprio termo utilizado: suicídio. A palavra é um neologismo criado a partir do pronome reflexivo “sui-“ e do verbo “caedere”, que significa matar de forma violenta, logo já surge impregnada com um sentido de “assassinar a si mesmo”, sendo postulada da mesma maneira como homicídio, parricídio, fratricídio e tantas outras que denotam uma morte violenta. Entretanto, tal criação comete erros gramaticais ao usar um pronome reflexivo como prefixo, o que não é permitido pelas regras do latim clássico. Mas o que vale para análise é que em toda a cultura ocidental, houveram vários outros nomes para designar o ato de ceifar a própria existência, porém sem ser carregado por julgamento moral, como pode ser visto nos textos gregos nos quais são empregados termos como autothanásia (morte de si), hekousios thanato (morte voluntária), aphistamai tou biou (autoafastamento da vida) ou mesmo exagoge eulogos (saída racional). Além disso é possível averiguar nos textos latinos as expressões vitam fugere (saída precipitada), vita exire (deixar a vida), obviam morti procedere (proceder em direção à morte) ou mesmo ad mortem ire (ir para a morte). Partindo disso, é mister analisar o ponto de virada no qual a morte voluntária deixa de ser apenas um óbito autoimposto para um pecado mortal ou mesmo crime.

    Iniciando pela tradição hebraica é possível reconhecer nove suicídios presentes no Antigo Testamento. Começando por Saul no 1º livro de Samuel, capítulo 31. Saul, israelita, ao ver seus três filhos, Jônatas, Abinadab e Melquisua, serem mortos pelos filisteus no monte Gelboé, diz claramente ao seu escudeiro: “Desembainhe a espada e me atravesse, antes que esses incircuncisos cheguem e caçoem de mim” (1SM 31,4). O servo não obedece, então o homem derrotado e ferido por flechas se atira sobre a própria espada, sendo seguido pelo companheiro desobediente. Em Juízes, capítulo 9, há a história de Abimelec, filho de Jerobaal, que assassinou seus setenta irmãos e ao tentar tomar uma torre fortificada no centro da cidade de Tebes, foi ferido gravemente na cabeça por uma mulher e, assim como fez Saul, chamou o escudeiro e disse: “Pegue a espada e mate-me, para não dizerem que uma mulher me matou” (JZ 9,54). Ainda em Juízes, agora capítulo 16, surge outro personagem bíblico que agiu por meio da autoquiria, Sansão. No relato, o homem era agraciado de enorme força, mas ficou completamente débil ao ser traído por Dalila, que corta seus cabelos que eram consagrados ao Deus hebraico. Fraco e dominado, Sansão invoca a Javé pedindo que suas forças sejam restituídas e com isso consegue derrubar o templo matando vários de seus inimigos e a si mesmo. Eleazar se lança em uma investida contra um elefante que transportava a majestade romana inimiga dos judeus, Antíoco V Eupátor, matando o animal que cai sobre seu algoz, ceifando-o instantaneamente (1 MC 6,46). Uma morte muito violenta é retratada em 2 Macabeus 14, 41-46, quando Razis, ou Razias, ao se ver derrotado e na busca de evitar ser feito prisioneiro de guerra, se transpassa com a própria espada, mas não consegue dar cabo de sua vida com tal golpe, então corre na direção das tropas inimigas e arranca os intestinos com as próprias mãos. Salvo de efeito Werther por exposição do ato, são passagens do livro mais vendido e lido do mundo. Zambri, ou Zinri, acusado de ter matado o rei de Israel, foi encurralado em uma torre de seu palácio e a incendiou. (1 RS 16, 15-18). Aquitofel, ou Aitofel, ao não ter seus conselhos seguidos sobre um atentado contra o rei Davi, “colocou a casa em ordem e depois se enforcou e morreu” (2 SM 17, 23). E Ptolomeu, acusado de traição por ter abandonado Chipre, se suicida com veneno no 2º livro dos Macabeus, capítulo 10, versículo 13.

    As mortes até então apresentadas foram denotadas de sentidos diversos e, em alguns casos, tendo uma qualificação honrosa de evitar um destino pior ou mesmo heroica e altruísta. A condenação do suicídio, sendo que tal palavra ainda nem existia na época dos escritos, tardaria ainda a aparecer e, nessa busca, é preciso investigar textos da antiguidade clássica antes de partir para era cristã e o pensamento contemporâneo.

    Aristócles, filósofo ateniense mais conhecido como Platão, possui em seu último diálogo, As Leis, o mais longo deles, importantes considerações sobre a morte autoinfligida. Vale a ressalva, que foi discípulo de Sócrates, sendo que este foi “obrigado” a tirar a própria vida a mando do Estado. Segundo o direito grego, aquele que fosse condenado a pena máxima (autoextermínio), poderia propor uma pena secundária para que não fosse necessária a morte. Sócrates foi condenado a tal sentença por estar corrompendo a juventude e importunando os cidadãos atenienses, porém, com caráter jocoso, propõe como pena que a classe política fosse responsável pelo pagamento de uma pensão vitalícia para ele. Tal desdém se deu, primordialmente, pela concepção de morte do réu que garantia que seria um sono eterno sem sonhos ou, se houvesse uma vida no inframundo (Hades), ele se encontraria com seus mestres e aprenderia muito mais. Sentenciado a ingerir cicuta, o filósofo cumpre sua condenação dialogando que a filosofia deveria ser um exercício de aprender a morrer, porém não se deve retirar-se da vida sem que os deuses desejem, pois, a vida pertence a eles e, da mesma maneira que um escravo não está autorizado a se matar, um cidadão também não poderia sem um sinal claro (FÉDON 61b – 62c). Mesmo com seus discípulos subornando os guardas e elaborando todo um plano de fuga, Sócrates compreende a condenação como um sinal divino e que se deve cumprir.

    Platão distingue claramente os casos em que a saída voluntária da vida se faz de maneira lícita e ilícita, separando que é lícito se matar se for acometido de alguma condição extremamente dolorosa, para evitar uma vergonha certa ou, como no caso de seu mestre, quando obrigado pela cidade. Partindo disso, elabora as condenações as quais devem sofrer aqueles que ceifaram a existência como “as sepulturas [...] [devem] ficar isoladas e ninguém deve ser enterrado junto; em segundo lugar, eles devem ser enterrados, sem glória, na fronteira das doze regiões anônimas e não cultivadas: as sepulturas ficarão sem lápide, ou seja, sem indicar seus nomes” (PLATÃO, LEIS IX, 873 C2-D8 apud PUENTE, 2008, p.61). Seguindo pela análise do Fédon, é defendido que o corpo é o cárcere da alma e que, assim como um soldado não pode abandonar o seu posto de vigília, o Homem não deve abandonar a vida. Porém, por mais que houvessem condenações aos sujeitos que se matam, ainda a ideia da morte voluntária é bem permissiva e não traz uma condenação sobrenatural post-mortem.

    Aristóteles, discípulo de Aristócles, rompe parcialmente com as ideias de seu mestre, em Ética a Nicômaco, ao trazer que o ser humano não pertence aos deuses, mas à Cidade e uma vez que as leis não obrigam ao cidadão tirar a própria vida, então torna-se logo um crime contra si, contra a virtude da razão e contra a Cidade, devendo, assim, ser punido com todo o rigor. Ademais, acrescenta que não há licitude de abreviar os sofrimentos no caso de pobreza ou mesmo de dor.

    O mais proeminente filósofo helênico a tratar sobre o tema, talvez, seja Lúcio Aneu Sêneca. Contemporâneo de Jesus e conselheiro do imperador Nero. O mais famoso dos estoicos teve seu fim por meio das próprias mãos a mando do Estado, assim como Sócrates, acusado de participar da Conspiração de Pisão, que visava derrubar o governo romano. Sêneca defendia que a saída antecipada da vida era apropriada em alguns casos, como pela pátria ou pelos amigos, para evitar uma vergonha ou humilhação, se o sujeito padecer de uma grave enfermidade, demência ou desvario e, até mesmo, nos casos de pobreza. Porém, só o Homem sábio (sophós) distinguiria a correta hora de retirar-se da vida, pois tal ato seria o mais racional de todos, entretanto, a totalidade dos Homens seria classificada como phaûlos ou stultus, ou seja, são movidos pela opinião, logo, incapazes de decidirem racionalmente sobre a morte. Em Epístolas a Lucíolo, mais precisamente na epístola 70, é possível entender que o pensamento estoico garante que “não é sempre que a vida deve ser conservada; na verdade, bom não é viver, mas viver bem. Assim, o Homem sensato viverá o quanto deve e não o quanto pode. Ele observará onde triunfará, quando fará o quê, de que maneira, em benefício de quem. Considera sempre de que qualidade seja sua vida, não de que quantidade” (SÊNECA, EPÍSTOLAS A LUCÍOLO, VIII, EPÍSTOLA 70, 4 – 5 apud PUENTE, 2008, p.67 – 68).

    A Idade Média é classicamente caracterizada pelo forte poderio católico e dois pensadores influenciaram toda a condenação moral daqueles que se aproximam da morte voluntariamente: Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Todavia, faz-se necessário a ressalva que aquele que cometia a morte de si mesmo por padecer de um caso de frenesi seria inocentado perante a Deus e aos Homens. Aurélio Agostinho de Hipona, mais conhecido como Santo Agostinho, marca o início da Idade Média ao realizar o julgamento da morte de Lucrécia em sua obra De Civitate Dei (A Cidade de Deus). A história conta que Lucrécia era filha de um prefeito de Roma e esposa de um rebelde que visava derrubar a monarquia romana, então o filho do rei a estuprou. Marcada pela desonra, ela conta ao marido e ao pai o que aconteceu e depois se mata. Valendo-se do quinto mandamento (não matarás), Agostinho explana que também é aplicado a matar a si próprio, o que resultaria em um pecado mortal, pois somente Deus poderia dispor de tirar a vida do sujeito, um retorno claro aos argumentos de Sócrates e Platão. Dessa maneira, ele condena que Lucrécia teria sentido prazer e consequente vergonha, o que acarretou seu suicídio (lembrando que tal termo ainda não havia sido criado). No mesmo texto, o filósofo cristão postula que tirar a própria vida trata-se de um pecado imperdoável contrário à vontade de Deus e nem no caso de estupro ou de evitar um destino pior se deve recorrer a tal ato, pois não se expurga um pecado de outrem cometendo um pecado maior. Sobre as mortes voluntárias bíblicas, continua com a explicação de Sócrates sobre o chamado de Deus, porém agora um Deus judaico-cristão.

    Uma grande discussão pode ser levantada sobre se a morte de Jesus Cristo é ou não um caso de saída racional da vida. No Novo Testamento, mais especificamente em João, capítulo 10, versículos 15 a 18, é possível destacar duas frases proferidas pelo próprio Cristo: “Minha vida, ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou” e “Eu dou minha vida pelas ovelhas”. Estará presente, em várias outras passagens da Bíblia, o afastamento cada vez maior da vida e uma busca pela morte, principalmente nos evangelhos e epístolas de Paulo. Tal discussão foi pouco abordada na história pela força do pensamento cristão que impera até hoje, bem como suas fortes condenações contra o comportamento de pôr fim a vida, o que diminuiria ou ao menos negaria o caráter divino do filho de Deus e o tornaria pecador, conforme as leis religiosas. Pela história da Paixão de Cristo, ao ser entregue aos oficiais, o apóstolo Pedro ataca as forças militares cortando uma orelha de um soldado para que Jesus possa empreender fuga, entretanto, a estrutura é recolocada com um milagre e Cristo prossegue em direção a sua morte, o que não difere muito do próprio Sócrates ao aceitar sua condenação.

    As Cruzadas surgiram entre a morte de Santo Agostinho e o nascimento de São Tomás de Aquino e deram uma nova configuração a morte intencional de si. Até então, e por boa parte da Idade Média, “a morte voluntária é considerada consequência de uma tentação diabólica por meio do desespero, ou como comportamento tresloucado; o gesto, condenado como assassinato, é brutalmente reprimido, e seguido do confisco dos bens” (MINOIS, 2018, p.10). Porém, havia uma clara distinção entre a condenação de um nobre e de camponês, já que muitos guerreiros empreendiam na Guerra Santa rumo a uma morte certa sob a justificativa religiosa ou mesmo nos torneios e duelos que garantiriam uma forma de morrer sem uma condenação divina. Outro ponto de grande segregação entre os estratos sociais é que a morte autoimposta pode ser tomada como justificada para os nobres no caso de sacrifício, amor, cólera e loucura. Uma personagem interessante surge nesse meio, Joana d’Arc. Santa da igreja católica e conhecida mártir, ela se joga do alto de uma torre, porém não chega a consumar o autoextermínio.

    Tomás de Aquino, santo católico e principal perpetuador da doutrina escolástica, que influencia até hoje o sistema educacional, revisita diretamente Aristóteles, se baseando no livro Ética a Nicômaco para tecer sua argumentação contrária ao fenômeno da saída intencional da vida, além de usar dos argumentos teológicos de Agostinho de Hipona. Em seu livro Suma Teológica, mais precisamente no artigo 5 da questão 64 da segunda parte, é feito um levantamento categórico das mortes voluntárias colocadas como justificadas perante aos Homens e Deus, mas o autor advoga contra cada tipo, desde o suicídio para evitar um mal maior até no caso de estupro, colocando que aquele que tira sua própria vida padece de um pecado mortal contra a lei divina, pois só Deus pode dar e tirar a vida, contra a lei natural, já que o caminho correto é lutar pela vida, e contra a lei moral, uma vez que é uma ofensa à comunidade e à caridade. O que de fato se apresenta é um retrocesso quanto ao entendimento das questões psicológicas, pois o que era compreendido como “loucura”, “desvario” ou “lêros”, agora é amplamente validado como uma tentação diabólica, o desperatio. Martinho Lutero, uma das figuras centrais da Reforma Protestante, garantia que a morte autoinfligida era um assassinado cometido pelo próprio diabo. Em conformidade com essas ideias, aquele que se mata precisa ter o corpo exorcizado e sofrer as desonras públicas, porque comete um pecado contra Deus, ao duvidar da misericórdia divina, e contra a Igreja, pois não acredita no poder do clero de intervir. Assim há uma clara investida que busca tanto diminuir o número de mortes quanto a expansão do poder e de bens da própria instituição eclesiástica.

    Um novo movimento inicia-se na Europa ao final na Idade Média e nele surge uma nova valorização do pensamento racional e da figura do Homem, o Humanismo Renascentista. O principal autor a escrever sobre o tema da morte voluntária foi Michel Eyquem de Montaigne, em sua obra Ensaios, de 1580, especificamente no livro II, capítulo 3, intitulada Costume da ilha de Quios. Ele faz um retorno aos argumentos de Platão, Santo Agostinho e aos estoicos. Assim como Sêneca, é admitido a morte voluntária em alguns casos específicos, que são ilustrados longamente com casos conhecidos, desde a antiguidade clássica. Montaigne busca uma diminuição do peso do pecado atribuído pela tradição cristã a esse tipo de morte, de modo que nem o Estado, nem a religião deveria legislar sobre as escolhas individuais pelo próprio fim.

    As atitudes condenatórias a respeito do fenômeno da automorte influenciaram a criação do termo “suicídio”. Suicídio surge como um neologismo em latim, suicidium, formado a partir da união do pronome reflexivo, usado equivocadamente como prefixo, sui com verbo caedere, que significa matar de forma violenta. A primeira menção ao termo foi na obra Religio Medici do Sir. Thomas Browne em 1643, ou seja, não está presente em nenhum texto latino anterior, talvez justamente por esse erro na construção da palavra. É importante salientar que o termo suicídio foi criado justamente para classificar esse tipo de morte juntamente com outras de grande condenação moral, como homicídio, fratricídio, parricídio, matricídio, infanticídio e tantas outras, ou seja, tirar a própria vida é um ato tão condenável quanto matar os pais, irmãos ou mesmo crianças. Isso demonstra o quanto as condenações clássicas e religiosas ganharam repercussão e influenciaram o pensamento contemporâneo.

    Um certo fato contribuiu para fortalecer o tabu do suicídio. Em 1774, Johann Wolfgang von Goethe publica sua obra Os Sofrimentos do Jovem Werther, clássico do romantismo alemão, que trazia a história de um rapaz apaixonado por uma mulher mais velha que era comprometida e, não podendo ter seu amor correspondido, acaba por dar fim a sua vida. Após a leitura do livro, vários jovens, que se identificaram com a situação de Werther, decidem seguir pelo mesmo caminho e inicia-se uma onda de suicídios, “no entanto, o impacto suicida do romance de Goethe nunca foi conclusivamente demonstrado” (ALMEIDA, 2000). Por causa desse fato que o efeito de contágio do suicídio recebe o nome de efeito Werther. Hoje, é possível comprovar que quando um caso de suicídio é exposto detalhadamente pela mídia, os riscos de novas mortes pelo mesmo método aumentam de 81% a 175% nas semanas e meses seguintes (IASP, 2017; LADWIG ET AL, 2012; SISASK & VARNIK, 2012; HAWTON ET AL, 1999; SCHMIDTKE & HÄFNER, 1988). Criou-se assim a falsa ideia de que falar sobre suicídio estimula o surgimento de novos casos, sendo que na verdade, é a exposição desse evento em seus minuciosos detalhes, mostrando o método, apontando a causa como um motivo banal e o desprezo aos serviços de prevenção e intervenção que realmente causam tal aumento nos números e “este aspecto da imitação, [...], parece surgir mais vincado nos jovens, que tenderiam a uma identificação patológica” (PHILLIPS, 1974; SACKS & ETH, 1981; GOULD & SHAFFER, 1986; SARAIVA, 1991; apud ALMEIDA, 2000).

    Ainda na Alemanha, agora no século XIX, Arthur Schopenhauer, em sua magnum opus, O mundo como Vontade e representação, elabora sua teoria de que todo ser vivo é dotado de uma Vontade que se objetiva na espécie e que, por sua vez, se objetiva no indivíduo. Tal Vontade seria uma força irracional e cega da natureza que atua em toda vida impelindo à reprodução, assim sendo o princípio básico de toda a vida humana também, o que pode ser compreendido como Des Ur-Eine (o Uno Primordial). Sendo ela infinita, não pode ser satisfeita com objetos finitos, gerando assim uma dor e sofrimento. Um grande problema se dá em a ação da Vontade de vida ser inconsciente, pois são criados mecanismos pela espécie para que a torne camuflada e garanta a sua perpetuação. No caso do Homem, foi o intelecto e, através dele, o indivíduo racionaliza quanto aos fatos denotando sentido e os transformando em fenômenos. Com uma Vontade totalmente superior a consciência individual, o indivíduo que se mata não fere a vida, mas, apenas um ser da espécie, pois a vida é um hiato entre dois momentos que existiu absolutamente nada. Também defende que não há motivos para se temer a morte, uma vez que, além de ser a consequência de ter nascido, a experiência de morrer só é possível ser percebida se o sujeito estiver vivo, logo, é incompatível com a ausência de vida, assim o medo só se concebe antes de morrer e pelo conhecimento é possível domar tal sentimento. Para Schopenhauer, haveria apenas uma única condenação moral para o suicídio, que seria a ilusão da expurgação da vida, entretanto a morte do corpo não leva ao fim da mesma, já que o mundo continuará praticamente igual com a ausência do indivíduo, bem como existiu antes que ele nascesse, dessa forma não alterando a perpetuação da espécie, assim “quando destrói o fenômeno individual, ele de maneira alguma renuncia à Vontade de vida, mas tão somente à vida” (SCHOPENHAUER, 2005, VOL. I, §69). Ainda considera que assim como se acorda de um pesadelo, aquele que atinge o alto grau de angústia gerada pela incapacidade de satisfazer a Vontade da espécie com as vontades individuais e a impossibilidade de parar de querer, é impelido a romper com a vida e não deve ser condenado por isso.

    Leitor de Schopenhauer, Friedrich Wilhelm Nietzsche, deriva o conceito de Vontade de potência da Vontade de viver. Em sua obra, é possível ver um resgate dos argumentos estoicos que ratificam que a vida deve ser vivida levando em consideração a qualidade da existência e não a quantidade. Ademais, acrescenta que não haveria uma vida após a morte e que em si mesma, não há finalidade alguma para existência e nem sentido no pós-morte, de tal forma que agir denotando esse sentido enfraqueceria a vida, fazendo uma crítica ao cristianismo e ao platonismo. Nietzsche faz importante ressalva quanto ao Amor fati, teoria que afirma que diante da impossibilidade de mudar o destino, é preciso enfrentar o sofrimento e amar o curso da vida, então aquele que se mata foi incapaz de amar esse destino e por isso seria maculado como um suicídio indigno, pois foi acometido de um niilismo passivo que esgotariam todas as forças de criação e se entregaria ao se deixar morrer. O autor também é responsável pelo aforismo 157 do livro Além do Bem e do Mal (p.108) que traz que “O pensamento do suicídio é um vigoroso consolo: por meio dele se atravessam com sucesso muitas noites más”. Tal afirmação traz a compreensão de que é preciso se pensar a morte para denotar sentido à vida, além de demonstrar que o Homem deve ser livre para caminhar rumo ao seu fim sem que esse direito lhe seja retirado.

    O século XIX foi profundamente marcado pelo predomínio do paradigma biomédico que impunha a explicação da morte voluntária aos alienistas. O biopoder da figura do médico não era colocado em discussão até então, porém, surge no meio da sociedade francesa, David Émile Durkheim, que, na companhia do sobrinho, Marcel Mauss, escreve o livro O Suicídio. Desde o início da obra, é buscado salientar o caráter social do fenômeno da automorte, uma vez que são levantados argumentos que distinguem aqueles que se matam dos ditos como “loucos” ou “alienados”. Levando em consideração o que era classificado com tais termos, havia uma internação excludente e desnecessária, além de profundamente perversa e dolorosa, de pacientes mentalmente sãos, como no caso de jovens mulheres que perderam a virgindade ou mesmo não aceitaram o casamento imposto pelos pais, além de delinquentes e, até mesmo, crianças que nasciam dentro dos próprios asilos, lugares tais que foram descendentes, e por vezes ocuparam o mesmo lugar físico, dos antigos leprosários. A ideia de segregação do indivíduo em sofrimento psíquico é ainda presente nos dias atuais, fato que põe em voga a luta antimanicomial. Durkheim questiona os argumentos postulados por Falret, Esquirol, Pinel, Moreau de Tours e tantos outros que agiam pró-patologização de transtornos mentais envolvidos com a morte de si. Outro importante ponto da obra que marca o nascimento da sociologia moderna é que o suicídio pode ser resultado da interação indivíduo – sociedade, podendo, portanto, ser tipificado em: egoísta, altruísta, fatalista e anômico. O suicídio egoísta se daria no caso de indivíduos com baixa integração social e assim gerando um sentimento de não pertencimento, o que levaria a dar fim a vida. Já no suicídio altruísta ocorre o inverso, o sujeito abre mão da própria individualidade para agir de acordo com as demandas da alta integração social. O suicídio fatalista é resultado de uma alta regulação social que inviabiliza o indivíduo de imaginar uma possibilidade de futuro em tais condições. Assim como no antagonismo egoísta x altruísta, há o fatalista x anômico. No caso do suicídio anômico, a regulação social é baixa e muitas vezes após uma quebra social, principalmente relacionadas a isolamento e crises financeiras. Durkheim levantou boa parte dos debates que são realizados atualmente, inclusive do próprio caráter de contágio do suicídio. Para ele, a imitação só se daria em núcleos restritos de pessoas com afinidade e que possuem algum vínculo de relacionamento, sendo praticamente impossível uma alteração na ordem social decorrente de uma morte autoimposta.

    Pouco se evoluiu depois das discussões levantadas por Durkheim, entretanto muito se diminuiu da importância dada a tal autor. É preciso revisitar sua obra e levantar debates públicos com o real comprometimento com a multifatorialidade e interdisciplinaridade que o tema exige.


    Conclusão




    O fenômeno do suicídio intrigou diversas áreas do conhecimento durante toda a história e tomou uma conotação diferente de acordo com cada período. Passou desde de ser um ato de bravura até sinônimo de possessão demoníaca e assassinato. As condenações religiosas e morais dificultam o acesso a um serviço de apoio por parte das pessoas que estão sofrendo, além de fazer um juízo de valor de minimiza a dor do indivíduo e o torna reduzido a um punhado de neurotransmissores. A compreensão do sujeito em seu aspecto biopsicossocial leva a uma melhor intervenção e evita reducionismos, sejam eles biomédicos ou sociais.

     






    Referências bibliográficas




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